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Domingo, 06 de Outubro de 2024

Saúde

Pode uma enfermeira governar uma cidade?

Quase 5% dos candidatos nesta eleição são trabalhadores da saúde. Só na enfermagem, são mais de 8 mil – e agentes de saúde vêm em seguida

Benê Barbosa
Por Benê Barbosa
Pode uma enfermeira governar uma cidade?
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. Maioria é mulher, mas há barreiras à busca pelo Poder Executivo. Confira levantamento inédito do Outra Saúde

Nas eleições municipais de 2024, iniciadas na última sexta-feira (16/8), a participação dos trabalhadores da saúde como candidatos será massiva e proeminente. De acordo com dados da plataforma DivulgaCand do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), revisados por este boletim, eles serão pelo menos 22 mil postulantes a um mandato eletivo – ou quase 5% do total de candidatos do pleito de 2024.

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A categoria mais representada serão os profissionais da Enfermagem, que somam mais de 8 mil candidaturas, entre enfermeiros, técnicos e auxiliares. Logo em seguida, vêm os agentes de saúde. Contudo, mais de 90% deles tentarão ser vereadores, e entre os técnicos e agentes apenas 0,06% almejam chegar à prefeitura de suas cidades. Entre os médicos, o cenário é completamente diverso: quase metade dos candidatos que se registraram com essa ocupação lutarão pelo Poder Executivo (seja a prefeito ou vice). Mas não é só no cargo disputado que as dezenove profissões ligadas à saúde analisadas demonstram suas diferenças. Há também clivagens de gênero e de tendência política, como mostra a análise que realizamos.

Os dados referentes às capitais, destacados em nosso levantamento, são particularmente ilustrativos nesse sentido. Os profissionais da saúde que disputarão a prefeitura dessas cidades por partidos considerados de direita são quase todos médicos e homens – salvo por uma candidata, também médica, em Porto Velho (RO). Já nas legendas de esquerda, além da quase paridade entre os sexos, cada um dos candidatos é de uma profissão diferente: há um farmacêutico, uma assistente social, um odontólogo, uma auxiliar de enfermagem e uma enfermeira, com os quais nossa reportagem entrou em contato para conhecer as razões de sua participação na política.

Em uma série de gráficos, análises e seis entrevistas com candidatos e lideranças de categoria, Outra Saúde apresenta agora a seus leitores um panorama da participação dos trabalhadores da saúde nas eleições de 2024.

Mais de 22 mil candidatos da saúde

Os dados sobre as candidaturas de profissionais de saúde inscritas na plataforma do TSE, que podem ser visualizados no gráfico acima, demonstram que essas categorias participarão massivamente do processo eleitoral. São pelo menos 22,4 mil candidatos a prefeito ou vereador – ou cerca de 5% do total das pessoas que disputarão um cargo de âmbito municipal ano.

Nossa tabela contabiliza 13 das 14 profissões de nível superior reconhecidas pelo Conselho Nacional de Saúde. Os educadores físicos, que seriam a 14ª profissão, não são discriminados na plataforma DivulgaCand, enquanto os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais são contabilizados juntos pelo TSE. Além disso, foram incluídos na análise cinco empregos que não exigem diploma universitário: técnico de enfermagem e assemelhados, agente de saúde, técnico de laboratório e raio X, auxiliar de laboratório, operador de equipamento médico e paramédico.

É provável que haja ainda mais candidatos trabalhadores da saúde do que os 22,4 mil que se identificaram formalmente como tal: não é possível contabilizar quantos se inscreveram como aposentados ou servidores públicos municipais, estaduais e federais – categorias que podem abarcar esses profissionais. Além disso, os que já possuem mandatos eletivos podem ter registrado sua ocupação como “prefeito”, “vereador” ou outro cargo similar.

No pleito, cinco profissões da Saúde serão bem mais numerosas que as demais: técnicos e auxiliares de enfermagem (4,3 mil), enfermeiros (4 mil), agentes de saúde (3,1 mil), médicos (2,4 mil) e assistentes sociais. Juntas, elas representam 72% das candidaturas da saúde.

Contudo, os números brutos sobre a quantidade de candidatos não revelam toda a desigualdade que rodeia o pleito. Como destacamos, incríveis 98% dos auxiliares de enfermagem e agentes de saúde (1ª e 3ª categoria com mais candidatos) concorrerão à vereança – enquanto apenas 54% dos médicos candidatos tentarão o Legislativo. Isso sugere a manutenção, neste pleito, da velha dinâmica em que indivíduos de profissões mais “prestigiadas” e bem-remuneradas vêm de uma origem social mais politicamente influente e mais rica – e consequentemente, têm maior tendência de disputar os cargos do Poder Executivo.

Os demais profissionais não questionam o direito dos médicos de concorrer ao que quiserem. Contudo, frisam os desequilíbrios que os impedem de fazer o mesmo. “Isso tem a ver com a cultura de supervalorização de uma categoria em detrimento da outra, que infelizmente paira na nossa sociedade. Os médicos, querendo ou não, historicamente são mais valorizados. Apesar de terem igual importância dentro da assistência, as demais categorias da saúde acabam sendo vistas como secundárias e isso mina a autoconfiança dos profissionais da enfermagem, por exemplo. Eles não se enxergam em cargos de liderança”, reflete a enfermeira Ludmila Outtes, da Unidade Popular (UP), que é candidata à prefeitura de Recife.

“Quando se fala em enfermagem, estamos falando numa categoria composta por 85% de mulheres e onde 60% delas são negras. Embora não exista formalmente uma hierarquia, há na prática muitas situações de assédio, em uma área de trabalho muito sobrecarregada, precarizada e socialmente desrespeitada, inclusive pelo poder público. Obviamente, essa realidade vai se refletir na inserção política dessa categoria”, adiciona Fabiana Sanguiné, auxiliar de enfermagem e candidata à prefeitura de Porto Alegre pelo PSTU.

O cenário de entraves à disputa de cargos mais altos não se restringe à enfermagem. Das 19 categorias da saúde analisadas, 14 terão mais de 89% de seus candidatos disputando um cargo no Poder Legislativo municipal, com um número desproporcionalmente menor buscando se eleger à prefeitura.

Enfermagem e mulheres são maioria

Nesse sentido, uma das informações que saltam aos olhos nos dados do TSE é a presença extraordinária que terá a enfermagem nestas eleições. Em suas subdivisões, ela abarca a primeira e a segunda categoria de trabalhadores da saúde com mais candidatos. Houve inclusive um crescimento proporcional: com 8,3 mil candidaturas registradas, enfermeiros, técnicos e auxiliares representam sozinhos 1,85% de todos os candidatos a prefeito e vereador de todo o país, enquanto na eleição de 2020 eles eram apenas 1,54%.

Para Solange Caetano, enfermeira e presidenta do Fórum Nacional da Enfermagem (FNE), isso se deve ao “amadurecimento da categoria, principalmente ao longo da pandemia, em que os trabalhadores perceberam que era necessário se organizar politicamente para se fortalecer para a busca de direitos”. Nesse sentido, a recente onda de mobilizações da enfermagem teria influenciado na avalanche de candidaturas.

Só no ano passado, a categoria teve duas importantes vitórias a partir dessa luta: as conquistas de um piso salarial e da criação de salas de descanso exclusivas. Como ambas as leis foram apenas parcialmente implementadas, tanto enquanto candidatos quanto enquanto eleitoras, as trabalhadoras da enfermagem pretendem pressionar por sua aplicação plena e por outras ações, como a regulamentação da jornada de 30 horas, diz Solange.

“Quem vai definir o orçamento da Saúde, o valor do piso salarial que é pago para as categorias e várias outras questões são o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Por isso, a enfermagem despertou para a necessidade de ocuparmos esses espaços, porque infelizmente as atuais prefeituras e bancadas de vereadores só defendem as elites que puseram elas ali, não defendem a classe trabalhadora”, complementa a prefeitável Ludmila.

Refletindo a face majoritariamente feminina da categoria, assim como Ludmila Outtes (UP) em Recife e Fabiana Sanguiné (PSTU) em Porto Alegre, a maioria das representantes da enfermagem na eleição de 2024 são mulheres: elas são 75% dos candidatos entre os técnicos e auxiliares e 69% entre os enfermeiros. Em outras ocupações, como as assistentes sociais (88%), as nutricionistas (84,8%) e as fonoaudiólogas (84,4%), o predomínio do gênero feminino entre as postulantes é ainda maior.

Uma das representantes das fonoaudiólogas é Lígia Mendes, também da Unidade Popular, que concorrerá à vereança em São Paulo. Ela avalia que a baixa participação de sua classe tem motivo claro: “A categoria tem mais de 90% de pessoas do gênero feminino. Acredito que a histórica exclusão das mulheres do espaço público e de poder se reflete na tímida participação política das fonoaudiólogas”.

Há mais mulheres que homens em 10 das 19 profissões analisadas e paridade em mais outra. Na soma total, elas representam 59,39% das candidaturas de trabalhadores da saúde.

Capitais: os médicos e as exceções

Para além do quadro nacional geral, o recorte específico da presença dos trabalhadores da saúde candidatos à prefeitura nas eleições das capitais é de bastante interesse, devido ao caráter estratégico do pleito nessas cidades. O gráfico acima apresenta quais são essas candidaturas. Vale destacar que a afiliação política indicada é a da legenda, e não do candidato específico.

Nas 26 capitais estaduais do país onde haverá eleições municipais (excetuada Brasília), 14 trabalhadores da saúde tentarão se eleger à prefeitura. De acordo com nosso levantamento, 9 deles (64,2%) são médicos. Os 5 outros, em uma configuração que demonstra a disparidade da Medicina em relação às outras carreiras, são cada um de uma profissão diferente da área da Saúde: uma enfermeira, uma assistente social, um odontólogo, uma auxiliar de enfermagem e u farmacêutico.

O gráfico no início desta seção também mostra uma curiosa interação entre as profissões desses 14 candidatos e sua posição no espectro político. A totalidade dos 6 candidatos filiados a partidos de direita são médicos. Já os 4 trabalhadores ligados a legendas de esquerda são todos não-médicos. Na centro-esquerda, há um cenário misto: são 4 postulantes, 3 médicos e 1 não-médico.

Um levantamento sobre a biografia dos candidatos formados em Medicina indica que a maioria deles não deve sua trajetória política à atuação em sua área de formação. Fazem parte de famílias ou grupos políticos influentes – e aí reside a motivação central de sua presença no pleito. Já os demais trabalhadores, como indicam a seguir as entrevistas conduzidas por Outra Saúde, todos se forjaram nas lutas de suas categorias, alguns desde o movimento estudantil.

A primeira delas, já apresentada nesta reportagem, é a enfermeira Ludmila Outtes (UP), candidata em Recife. Atualmente, ela é presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Pernambuco (SEEPE), papel que a pôs na linha de frente das mobilizações vitoriosas do segmento no último período. “A candidatura não foi uma decisão pessoal minha, foi uma decisão coletiva da Unidade Popular tendo em vista o objetivo de amplificar a nossa luta” entre a categoria e os trabalhadores em geral, ela explica.

Já a assistente social Camila Valadão (PSOL), que já é deputada estadual do Espírito Santo, busca ser prefeita de Vitória. “Minha participação política foi ampliada a partir da minha entrada no movimento estudantil de Serviço Social e, após formada, fui presidenta do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS) do Espírito Santo. A educação e a formação em Serviço Social foram determinantes no meu desenvolvimento teórico e político. Penso que seria muito bem termos mais candidatos do Serviço Social e de outras profissões, não só vinculadas à saúde, mas também às demais áreas das políticas sociais”, disse a candidata capixaba a Outra Saúde.

Em Boa Vista (RR), será candidato o odontólogo Lincoln Freire (PSOL). No passado, ele já foi conselheiro estadual de saúde em Roraima e diretor do sindicato local de sua categoria. “Ao participar do sindicato dos odontólogos de Roraima, fui aprimorando minha atuação como sindicalista, passando a atuar também como ativista socioambiental,, sustentando a ideia de que é possível aplicar o desenvolvimento de uma cidade sem degradar o meio ambiente”, diz o cearense radicado na capital mais ao Norte ao Brasil.

No Sul, conhecemos Fabiana Sanguiné (PSTU), auxiliar de enfermagem que está disputando o Paço Municipal de Porto Alegre. “Eu sou trabalhadora do SUS há 27 anos. Em um hospital público, convivemos cotidianamente com as principais vítimas da desigualdade social e da destruição dos serviços públicos. Sou candidata como parte do meu envolvimento na luta dos trabalhadores, já fiz parte da direção do Sindicato de Municipários e sou diretora licenciada da Associação dos Servidores da Saúde”, conta.

Por fim, o farmacêutico Luciano Cartaxo (PT) completa a lista dos cinco profissionais da saúde não-médicos a disputarem a prefeitura das capitais. Ele busca se eleger em João Pessoa (PB), onde já foi vice-prefeito. Nossa reportagem não conseguiu entrar em contato com Cartaxo, mas as redes sociais do petista informam que sua vida política se iniciou no Centro Acadêmico de Farmácia da UFPB e teve continuidade em dois mandatos na presidência do Conselho Regional de Farmácia. Sendo assim, sua trajetória política também se construiu a partir das entidades representativas de sua classe.

Defesa do SUS no centro das campanhas

Apesar das profissões e opções partidárias distintas, os trabalhadores da saúde entrevistados para este texto convergiram em uma pauta: a necessidade urgente de defender o Sistema Único de Saúde (SUS), com mais investimentos e fortalecimento da presença da saúde pública nos territórios. “A defesa do SUS é incontestavelmente uma luta minha e do meu partido, queremos uma saúde pública, gratuita e de qualidade para os trabalhadores e para isso defendemos o fim das privatizações e terceirizações no SUS”, reivindica a enfermeira Ludmila Outtes (UP) sobre o programa de sua candidatura e de seu partido.

Assim como Ludmila, a candidata do PSTU na capital gaúcha também frisou a importância de um SUS 100% estatal nos municípios. “A entrega dos serviços públicos à iniciativa privada causa a descontinuidade permanente dos serviços, desestruturando as equipes e prejudicando o atendimento da população. Nós defendemos o fim das terceirizações, das privatizações e das PPPs nos serviços públicos e defendemos a reestatização da saúde municipal em Porto Alegre”, afirmou a auxiliar de enfermagem Fabiana Sanguiné.

O impulsionamento da participação social no SUS também não pode faltar na agenda dos próximos prefeitos, diz Lincoln Freire (PSOL). “O fortalecimento dos conselhos municipais de saúde é primordial no acompanhamento das diferentes áreas da saúde, levando as demandas da população ao poder público”, aponta o odontólogo.

Além disso, a defesa da saúde pública deve caminhar lado a lado da defesa da assistência social, que também passou por um período de desmonte, indicou Camila Valadão (PSOL): “Defender o SUS e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é uma premissa fundamental para garantir os direitos no Brasil, especialmente em um contexto de ataque e desfinanciamento”.

                     A defesa do SUS, apontou Ligia Mendes (UP), se conecta inclusive com um programa de transformações mais amplas do país. “O período eleitoral nos permite fazer um debate mais profundo com a sociedade sobre o SUS. Para garantirmos boas condições de saúde e atendimento em todos os âmbitos da nossa vida, é necessário superar esse sistema onde tudo é mercadoria e lucro e construir uma sociedade onde o povo seja poder e a política de saúde atenda aos interesses da classe trabalhadora, uma sociedade socialista”, conclui a fonoaudióloga.

Fonte: Outra Saúde - Guilherme Arruda

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