Há cerca de dois anos, imagens de "montanhas" de roupas entre as dunas de areia no deserto do Atacama, no Chile, ganharam os holofotes mundiais. Era o retrato impressionante do descaso e falta de responsabilidade da indústria da moda fast-fashion. A “lixeira do mundo”, como alguns meios de comunicação internacionais passaram a chamar a área afetada, recebia de forma silenciosa (até então) e clandestina pilhas de blusas, jaquetas e tênis de grandes marcas que nunca encontraram uma segunda vida.
Tudo parte da cadeia de produção global da moda que vai do sul global ao norte, e de volta ao sul: as roupas são fabricadas em Bangladesh e na China e vão para lojas no continente europeu, Estados Unidos e na própria Ásia. Parte daquilo que não é comprado é posteriormente adquirido por vendedores no Chile, maior exportador de roupas usadas na América Latina, para ser então revendido a outros países do continente. O que não é comercializado vai parar no deserto. O lixo têxtil virou um problemão: estima-se que o Atacama receba por ano 39 mil toneladas de roupas descartadas ilegalmente.
Buscando chamar atenção para esta realidade e mostrar que é possível mudar o ciclo de descarte nocivo, uma ação inédita transformou o "cemitério de roupas" no deserto do Atacama em passarela da moda com desfile ecológico. O palco foi Alto Hospício, que acumula uma montanha formada por mais de 59 mil toneladas de peças de roupas. Batizado de "Atacama Fashion Week", o evento foi produzido pela Organização Não Governamental (ONG) Desierto Vestido, em parceria com a Fashion Revolution e Instituto Febre.
Na desfile de moda em pleno lixão do Atacama, realizado nesta semana, os modelos vestiram looks feitos por produtores a partir de roupas despejadas no local. Junto da ação na passarela, o projeto ganhou um editorial fotográfico assinado por Mauricio Nahas, fotógrafo premiado, com mais de 30 anos de carreira.
“Estamos aqui todos os dias do ano, nessa luta difícil. E, dia após dia, vemos o problema se agravar. Precisávamos promover algo grandioso pra chamar a atenção de todos os agentes do problema para discutirmos uma solução. O Atacama não pode mais esperar”, disse em nota Ángela Astudillo, co-fundadora da Desierto Vestido, ONG que tem tentado buscar soluções solução locais e o envolvimento público-privado para enfrentar o problema.
Eloisa Artuso, confundadora do Instituto Febre, organização social que trabalha com justiça socioambiental na intersecção entre clima, gênero e moda, destacou a urgência de cobrar ação do setor no enfrentamento da crise climática. “Mesmo com todos os seus impactos, o setor da moda não é incluído com sua devida responsabilidade nessa agenda".
O Instituto Febre estima que para evitar o aumento de 1,5ºC buscado pelo Acordo de Paris, o setor da moda terá que reduzir suas emissões pela metade até 2030. Outra problema recorrente no Atacama que agrava o quadro são as queimas clandestinas das roupas, que também liberam emissões nocivas na atmosfera. Devido às longas cadeias de abastecimento e aos métodos de produção com uso intensivo de energia, as indústrias de vestuário e calçado geram de 8 a 10% do carbono global.
O efeito colateral da cultura do "descartável" impregnou os tempos modernos. Segundo o Pnuma, braço ambiental da ONU, muitos itens de vestimenta são usados apenas sete a dez vezes antes de serem jogados fora. Isso representa um declínio no uso de mais de 35% em apenas 15 anos. O descarte ilegal de peças não se restringe apenas ao deserto chileno --imensa quantidade de resíduos têxteis e roupas descartadas já foram vistas desde os bairros produtores de roupa em São Paulo até à capital de Gana.
"É crucial uma mudança sistêmica na indústria da moda, e como cidadãos, todos temos um papel a desempenhar. Das marcas, queremos a responsabilização e compromissos robustos. Dos governos, a missão é reivindicar políticas públicas e fiscalizações. Com a sociedade civil, o nosso papel é disseminar informações e impulsionar ações de mobilização”, destacou Fernanda Simon, diretora executiva do Fashion Revolution Brasil, organização brasileira do maior movimento ativista da moda no mundo.
As marcas ainda continuam pouco transparentes sobre a quantidade de resíduos que geram. Neste ano, 80% das 60 maiores empresas que operam no mercado brasileiro e que foram analisadas pelo Índice de Transparencia da Moda Brasil do Fashion Revolution não divulgaram dados sobre a quantidade de resíduos de pré-produção – sobras, aparas, fios, finais de rolos de tecidos – gerados anualmente, e 83% não divulgaram informações sobre seus resíduos pósprodução – estoque excedente, amostras, peças com defeito, entre outros itens que, como se vê, acabam, no pior dos cenários, poluindo o Planeta.
A rede de parceiros do Atacama Fashion Week conta também com o apoio da agência Artplan, que desenvolveu toda a concepção criativa do projeto e da produtora de vídeo Sugarcane Filmes.
Por Redação, do Um Só Planeta
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